Por Sofia Fernandes
“Você já ouviu falar na figura feminina de Deus?”, perguntou-me a moça
com o olhar mais doce que eu poderia encontrar àquela hora, quase meia
noite, em Nova York. Estava num Starbucks, desfrutando do que mais
aprecio da franquia – internet livre e poltronas confortáveis -, quando
me chegou aos ouvidos aquela voz.
De início, pensei que fosse uma cantada, vai saber. Mas eu estava
esculhambada demais para receber tanta dedicação num flerte, raciocinei
em seguida, recapitulando minha chinela no pé e o cabelo toscamente
arranjado. E aquele olhar doce, aquele tom muito bem explicado tinham
todo jeito de pregação, matutei melhor e certeiramente.
Em outras circunstâncias, não daria abertura ao falatório, paciência
zero para proselitismo. Mas a figura feminina de Deus me pegou.
Afrodite, Sarasvati, Iemanjá, Gaia? Quem mandou me chamar?
Quando viu que eu estava topando negócio, minha interlocutora
prontamente sacou sua Bíblia, com capa customizada cor-de-rosa, da
bolsa. “A revelação está logo na primeira página, leia”. Segui sua
marcação feita com post-it verde-limão e fui em frente: “E criou Deus o
homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”.
O sofisma estava lançado. Deus criou o homem à sua imagem. Macho e fêmea ele criou. Portanto, Deus é macho, Deus é fêmea.
Depois fomos para o fim da Bíblia, Apocalipse 21:9. “E veio um dos
sete anjos que tinham as sete taças cheias das últimas sete pragas, e
falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a esposa, a mulher do
Cordeiro”.
Então é isso, o mundo surtando com interpretações sobre fim do mundo,
o surgimento do anticristo, a vinda dos cavaleiros do Apocalipse,
enquanto o último livro do cânone bíblico fala também da mulher do
Cordeiro de Deus. Cadê Hollywood nessas horas?
Seguimos ao longo de várias outras marcações. Post-its rosa,
amarelos, verdes indicavam outras passagens onde Deus fala no plural.
Quem estaria com ele? Quem vai saber?
O Starbucks estava fechando, tivemos que encerrar ali nosso passeio
pelo lado colorido da Bíblia. Ela me deu seu cartão da World Mission
Society Church of God. A igreja, fundada em 1964 na Coreia do Sul,
acredita também que a segunda re-encarnação de Jesus já passou por aqui,
justo na figura do fundador da religião. Aí o papo azedou.
Para minha surpresa, logo depois do meu encontro revelador, surge a
descoberta de um pedaço de papiro do século quatro, do tamanho de um
cartão de visita, com a sugestão de que o filho de Deus não passava as
noites frias da Galileia sozinho.
A descoberta da possível esposa de Cristo foi rapidamente rebatida
pelo Vaticano: “É uma desajeitada falsificação, como muitas outras com
origem no Oriente Médio”. É, não será dessa vez que Maria Madalena
ganhará sua promoção historiográfica.

Pensei no cartão de visita que recebi, do tamanho do papiro. Cabe
apenas o nome da igreja, uma citação bíblica e o e-mail dela: um apelido
adolescente, underline, 16, arroba hotmail. Se achassem esse fragmento
séculos depois, sinceramente não sei a que conclusão daria para chegar.
Portanto, pouco importa se o papiro é real, se Jesus tinha ou não
tinha uma esposa. O mais fascinante é que, no Egito do século quatro, é
possível ter havido gente como a doce pregadora da madrugada
nova-iorquina. Gente que tenta resolver uma lacuna crucial numa religião
que guia espiritualmente tantas mulheres maravilhosas: onde está o
feminino?
Publicado em Mulher 7 X 7 - Época