Eu curto muito os artigos do pessoal do Mulher 7 X 7 e sempre que acho um interessante publico nesse espaço para compartilhar com a meia duzia de leitores. Esse é simplesmente ótimo. Olha e eu estou quase chegando lá... ou seja, como o final do poema de Quintana.
"Quando se vê, já são seis horas
Quando de vê, já é sexta-feira
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
(Mário Quintana – Poema “O tempo”)
Ligue para alguém ou chegue numa mesa e pergunte:
- Como ‘cê está? Tudo tranquilo?
Nove entre dez pessoas responderão:
- Tranquilo, nada. Estou é correndo de um lado para outro que nem doido. Nem vejo o tempo passar…
As palavras usadas podem variar, mas o primeiro sentido das frases é:
nas 24 horas do dia não cabe nem metade dos meus compromissos! A
afirmação é feita por alguns com certo orgulho; subliminarmente há uma
convicção de importância, de status especial familiar ou profissional.
Outros falam como se reconhecessem uma realidade terrível, da qual estão
prestes a desistir, se jogando da primeira ponte. Há os
nervosos-amargos, os serenos-conformados, os doidos-de-sempre… Todos
correndo, sabe Deus pra onde.
Correr tem lá seus ganhos, é inegável. Quem faz muita coisa bem
depressa (ou faz muito de algumas coisas, igualmente rápido) pode
receber mais reconhecimento profissional, ter convivência próxima com
dezenas de amigos, ganhar bastante dinheiro, estar bem perto da família,
obter um corpo saradão, conhecer dezenas de lugares no mundo, comprar
bens variados e mais. Muito mais. Torna-se um mantra “Tudo ao mesmo
tempo agora”, sempre em correria desenfreada.
A maioria nunca para, não se questiona para onde está indo, nem por
que. A vida vai levando, feito na música de Zeca Pagodinho, e a criatura
lá, no esforço para manter os pratos escolhidos girando enquanto dança,
chupa cana, fala ao telefone, confere o facebook e coça o cachorro com o
pé. Boa parte não percebe a vida escoando entre os dedos e sequer
experimenta momentos de felicidade, o que torna mais estranho o conjunto
da obra.
Se não é raro refletir sobre esse jeito esquisito de levar os dias,
poucos somos os que conseguimos interromper o fluxo, diminuir o ritmo e
fazer escolhas que permitam realmente estar na própria vida, com
relativa calma. Desconfio que a dificuldade em botar o pé no freio não é
por inconsciência apenas, mas fundamentalmente por rejeição à perda.
Sim. Escolher implica perder. Se você quer ascensão profissional
imediata e comprar um apartamento nos próximos dois anos, não é boa hora
para providenciar gêmeos. Melhor abrir mão do que não couber e ir mais
devagar. Vale curtir os filhotes num apartamento pequeno, com carga de
trabalho razoável de 6/8 horas; em outros casos, pode ser o caso de
investir logo no trabalho e moradia, deixando o projeto de família para
depois, sem ignorar eventuais riscos. Se quer acompanhar o tratamento
oncológico de alguém da família, não dá para trabalhar do outro lado do
mundo, nem viajar por seis meses consecutivos. Ou perde a possibilidade
de apoiar o seu querido, ou perde o trabalho em país estrangeiro e/ou
semestre sabático. E sim. Perder é ruim, sabemos.
Desconfio que, no mundo atual, experimenta-se a ilusão de não ser
necessário escolher, nem passar pelos dilemas e frustrações inerentes ao
processo de optar, abdicar e preferir. É como se cada um acreditasse
caber na própria vida, simultânea e aceleradamente, a presidência de uma
multinacional e a maternidade de quíntuplos recém-nascidos. Para não
abrir mão de nada lá, nem cá, enfrentam-se maratonas diárias. Esquece-se
que é possível perder quase tudo, principalmente a saúde, mental,
física e/ou espiritual.
O mais intrigante é que, quando alguém começa a peneirar as suas
escolhas, é comum surgirem pressões em sentido contrário de diversos
lugares. Gente que sequer está feliz com o próprio ritmo começa
espernear contra meia dúzia de exclusões razoáveis.
Sobre o grau de insanidade generalizada a respeito desse assunto,
recentemente passei por experiência desconfortável e esclarecedora. Tudo
começou numa quarta-feira à noite, quando andava normalmente no
estacionamento coberto de um shopping. Apesar do chão seco, com a perna
direita pisei numa poça em que se misturavam água e óleo, quase um lodo
no chão, sem qualquer sinalização no local. Queda feia, urros de dor,
joelho como uma bola, atendimento pela brigada dos bombeiros civis,
hospital, cadeira de rodas, imobilização da virilha ao pé por sete dias,
até novos exames para conclusão do diagnóstico. Não é difícil imaginar
os transtornos das mais diversas ordens. No meio do caos de desmarcar
compromissos em outras cidades, avisar ao chefe, arrumar substitutos
para as funções familiares e etc, constrangida pelos transtornos
causados, ouvi unânime nos oito primeiros telefonemas de amigos:
- Que bom, Quel! Assim você descansa. Praticamente férias, né?!
Não. Não são férias. Férias implica poder assistir à TV terça à
tarde, mas por escolha e com planejamento. Férias não vêm acompanhadas
de dor, e sim de possibilidade de viagem sem culpa.
Cá entre nós, em que mundo esse povo vive? Que maluquice é essa de
considerar doença uma merecida folga? E o pior foi escutar no nono
telefonema:
- Menina que inveja! Onde é que essa poça está? Eu vou lá ho-je.
Aliás, acho que precisava mesmo é de uma fratura externa! (suspiro de
exaustão, sem risadas, nem tom de piada)
Minha vontade foi responder, com suave ironia:
- Oi?
Felizmente, para a preservação da amizade, resisti. Preferi falar
meia dúzia de palavras reconfortantes e enviar, por email, um tiquinho
de Quintana, mais especificamente o poema da epígrafe, que termina
assim:
“Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.”
Fiquei sabendo de um surpreendente pedido de demissão. Não fui eu. Juro. Foi o Quintana, gente. Devargazinho, sempre o Quintana."
* Raquel Carvalho, mineira, é advogada. Leia seus outros textos aqui.
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