Na minha época de adolescente, eu adorava escutar “Química” da Legião
Urbana. Os versos diziam que passar no vestibular era a senha para se
tornar “responsável, cristão convicto, cidadão modelo e burguês padrão”.
De fato, passamos boa parte da vida sendo estimulados a “passar no
vestibular” – real e metaforicamente. A seguir modelos e padrões.
O mundo dos heróis é repleto dessas “forminhas”. Heróis são os
superstars de nossa sociedade: eles compensam nossas fraquezas, nossas
inapetências, nosso egoísmo e nossa pequenez. Como se sabe, heróis não
são criaturas humanas, são semi-deuses: filhos de divindades com
mortais. Teríamos então todo o direito de nos sentir um pouco
intimidados diante de tanta perfeição. Diante de um herói, como admitir
que não sacamos nada de física, literatura ou gramática?
Como não lembrar do herói e corredor sul africano Oscar Pistorius,
que assassinou a namorada e alegou tê-la confundido com um ladrão? Ou
Lance Amstrong, o tantas vezes vencedor do Tour de France e campeão na
luta contra o câncer, desmascarado recentemente por uso e distribuição
de doping? Ou da lenda do esporte americano O.J Simpson, absolvido do
assassinato da mulher por uma tecnicalidade jurídica? Como não lembrar
do campeão da moralidade na política, que perdeu o mandato após a
revelação de relações criminosas com o jogo do Bicho? Como não
desconfiar de que na circunferência os extremos se aproximam?
Desconfio, estimulado por Heráclito, de todo homem-santo, de todo
“herói semideus”, de todo dono da verdade, de todo cidadão-modelo e
burguês padrão; desconfio de casamentos sem rusgas, de gente que não
envelhece nunca, de namorados e namoradas ideais.
Precisaremos de heróis e semideuses enquanto julgarmos que a tarefa
de viver é superior à nossa capacidade aguentar a vida como ela é. Mas o
único ato heroico, a única aventura, é viver a nossa jornada pessoal,
passando ou não no vestibular, caindo, levantando, ajudando e sendo
ajudado a levantar. E então, aos poucos, quem sabe, seremos capazes de
criar as nossas próprias “forminhas” – adequadas aos nossos sonhos e às
nossas aspirações. Nietzsche usava uma expressão para se referir ao amor
incondicional à vida do jeito que ela nos é dada: o amor fati – o amor
incondicional às coisas como elas são e não como idealmente “deveriam”
ser.
Então, meus amigos e amigas, desejo a todos muito amor fati! E cuidado com os “heróis-demais” !
(Este post é dedicado à mestra Dulcinéa Monteiro – que ensina Amor Fati na teoria e na prática.)
* Flávio Cordeiro, carioca, é publicitário.
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