Este relato me fez voltar no tempo. Há 14 anos vivi situação identica quando meu pai mudou de plano. É como se tivesse vivido tudo outra vez.
Vi alguém morrer na minha frente. E percebi que a morte pode ser
bonita, apesar de triste. Assisti à agonia dos últimos dias. Fiquei
olhando a respiração ofegante, precária, sem nada poder fazer.
Presenciei o fim de uma vida, à qual, de algum modo, devo a minha. Fui
testemunha do fechamento de um ciclo: e aí está a beleza de que falei no
início.
Cheguei à casa dos meus pais numa tarde de segunda. No quarto do meu
avô, há tempos muito mais uma acomodação hospitalar do que lugar de
descanso noturno, um concentrador havia sido instalado pela manhã: uma
espécie de filtro de ar, que entregava oxigênio diretamente em suas
narinas. O corpo estava inchado: mau sinal; os rins estavam falhando.
Mas o hospital disse que nada havia para ser feito e que ele deveria
ficar em casa. Dois dias se passaram, sem mudança significativa no
quadro. E assim poderia permanecer dias, semanas, até um mês…
Mas houve apenas mais um dia. Pela manhã, a respiração ficou ainda
mais ofegante, acompanhada do barulho de uma secreção constante, que se
fazia ouvir por toda a casa. Em vários momentos daquela quarta-feira,
achamos que ele estava indo embora. Os olhos ficavam abertos, mas
pareciam longe: gostaria de saber o que viam. Pegamos a sua mão,
rezamos, lhe agradecemos por tudo. Disse-lhe que cuidava da minha mãe
por ele e que todos o amavam muito. Mas ele ainda ficou conosco por mais
umas horas. “Está muito agônico”, contou o enfermeiro que o visitou
durante a noite. E a agonia, dele e nossa, só aumentou.
Chega a madrugada. É impossível dormir. Tentei ficar ao lado,
segurando a sua mão. Acompanhei a respiração cada vez mais difícil, a
secreção cada vez mais presente. A vontade era tirar meu pulmão e o
entregar-lhe, para que seu sofrimento passasse. O oxigênio que recebia
não fazia a menor diferença. Não havia mais nenhum traço de consciência
em seu olhar. Estava muito nervosa e comecei a andar pela casa. Deito no
sofá da sala e faço o que me resta: rezo, com toda a minha devoção, e
peço para que Deus acabe com seu sofrimento. Eis o momento em que nosso
egoísmo — o querer ter para sempre a presença — cede lugar ao amor em
sua forma mais bonita, que tão poucas vezes aparece em nossa vida:
preferi perdê-lo a tê-lo em agonia.
Minha mãe então acorda de seu sono breve e me manda descansar um
pouco, porque a noite pode ser longa. Ela fecha a porta do quarto: o
barulho da respiração diminui, porém continua gravado na minha mente. E o
meu pulmão não pode substituir o seu, velho, cansado, doente. Fecho os
olhos, mas poucos minutos depois eles se abrem assustados. “Corra,
Juliana, o vô está indo embora.” Levanto em sobressalto e me coloco ao
seu lado. Não sei onde pus minhas mãos; acho que ficaram apoiadas no
colchão, ao lado do seu braço. Não sabia o que fazer. Lembro-me apenas
de olhar seu rosto, acompanhando a respiração: a boca aberta, os olhos
perdidos, semicerrados, todas as rugas do rosto. “Ele foi embora. Vá com
Deus, meu pai”, disse minha mãe. E saiu por segundos do quarto,
buscando o telefone para falar com os irmãos. Mas houve ainda mais um
respiro. E esse só eu vi. Dei-lhe um beijo.
O último suspiro. Concretizado na minha frente. Senti uma palpitação
terrível, um nervosismo desmedido. As pernas falharam. Corri para minha
cama e deixei o corpo cair. Não sei o que se passava em minha mente.
Isso durou um minuto. Recobrei a razão em seguida: preciso ajudar minha
mãe. E voltei, achando serenidade em algum lugar forte dentro de mim que
eu não sabia que existia. Liguei para quem tinha de ligar. Abracei e
beijei meu avô por diversas vezes. Participei de um processo do qual
achei que não seria madura suficiente para tomar parte: carro de
funerária, corpo sendo levado, entrega da roupa, escolha do caixão.
Meu avô foi embora da vida com duas gerações ao seu lado: minha mãe e
eu. Uma amiga me disse que poucos têm o privilégio de morrer perto dos
que amam. Meu avô teve. Não faltou nada para lhe dizer, não faltou nada
para fazer. A não ser dar a ele meu pulmão jovem. Chegará um dia, se o
ciclo da vida se cumprir, em que meu pulmão velho estará cansado. Rezo
para que haja alguém ao meu lado, velho ou novo, querendo me dar o seu,
quando esse momento chegar.
Juliana Doretto
Mulher 7 X 7 - Época
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