domingo, 3 de março de 2013

Quando a morte é bonita

 Este relato me fez voltar no tempo. Há 14 anos vivi situação identica quando meu pai mudou de plano. É como se tivesse vivido tudo outra vez.

Vi alguém morrer na minha frente. E percebi que a morte pode ser bonita, apesar de triste. Assisti à agonia dos últimos dias. Fiquei olhando a respiração ofegante, precária, sem nada poder fazer. Presenciei o fim de uma vida, à qual, de algum modo, devo a minha. Fui testemunha do fechamento de um ciclo: e aí está a beleza de que falei no início.
Cheguei à casa dos meus pais numa tarde de segunda. No quarto do meu avô, há tempos muito mais uma acomodação hospitalar do que lugar de descanso noturno, um concentrador havia sido instalado pela manhã: uma espécie de filtro de ar, que entregava oxigênio diretamente em suas narinas. O corpo estava inchado: mau sinal; os rins estavam falhando. Mas o hospital disse que nada havia para ser feito e que ele deveria ficar em casa. Dois dias se passaram, sem mudança significativa no quadro. E assim poderia permanecer dias, semanas, até um mês…
Mas houve apenas mais um dia. Pela manhã, a respiração ficou ainda mais ofegante, acompanhada do barulho de uma secreção constante, que se fazia ouvir por toda a casa. Em vários momentos daquela quarta-feira, achamos que ele estava indo embora. Os olhos ficavam abertos, mas pareciam longe: gostaria de saber o que viam. Pegamos a sua mão, rezamos, lhe agradecemos por tudo. Disse-lhe que cuidava da minha mãe por ele e que todos o amavam muito. Mas ele ainda ficou conosco por mais umas horas. “Está muito agônico”, contou o enfermeiro que o visitou durante a noite. E a agonia, dele e nossa, só aumentou.
Chega a madrugada. É impossível dormir. Tentei ficar ao lado, segurando a sua mão. Acompanhei a respiração cada vez mais difícil, a secreção cada vez mais presente. A vontade era tirar meu pulmão e o entregar-lhe, para que seu sofrimento passasse. O oxigênio que recebia não fazia a menor diferença. Não havia mais nenhum traço de consciência em seu olhar. Estava muito nervosa e comecei a andar pela casa. Deito no sofá da sala e faço o que me resta: rezo, com toda a minha devoção, e peço para que Deus acabe com seu sofrimento. Eis o momento em que nosso egoísmo — o querer ter para sempre a presença — cede lugar ao amor em sua forma mais bonita, que tão poucas vezes aparece em nossa vida: preferi perdê-lo a tê-lo em agonia.
Minha mãe então acorda de seu sono breve e me manda descansar um pouco, porque a noite pode ser longa. Ela fecha a porta do quarto: o barulho da respiração diminui, porém continua gravado na minha mente. E o meu pulmão não pode substituir o seu, velho, cansado, doente. Fecho os olhos, mas poucos minutos depois eles se abrem assustados. “Corra, Juliana, o vô está indo embora.” Levanto em sobressalto e me coloco ao seu lado. Não sei onde pus minhas mãos; acho que ficaram apoiadas no colchão, ao lado do seu braço. Não sabia o que fazer. Lembro-me apenas de olhar seu rosto, acompanhando a respiração: a boca aberta, os olhos perdidos, semicerrados, todas as rugas do rosto. “Ele foi embora. Vá com Deus, meu pai”, disse minha mãe. E saiu por segundos do quarto, buscando o telefone para falar com os irmãos. Mas houve ainda mais um respiro. E esse só eu vi. Dei-lhe um beijo.
O último suspiro. Concretizado na minha frente. Senti uma palpitação terrível, um nervosismo desmedido. As pernas falharam. Corri para minha cama e deixei o corpo cair. Não sei o que se passava em minha mente. Isso durou um minuto. Recobrei a razão em seguida: preciso ajudar minha mãe. E voltei, achando serenidade em algum lugar forte dentro de mim que eu não sabia que existia. Liguei para quem tinha de ligar. Abracei e beijei meu avô por diversas vezes. Participei de um processo do qual achei que não seria madura suficiente para tomar parte: carro de funerária, corpo sendo levado, entrega da roupa, escolha do caixão.
Meu avô foi embora da vida com duas gerações ao seu lado: minha mãe e eu. Uma amiga me disse que poucos têm o privilégio de morrer perto dos que amam. Meu avô teve. Não faltou nada para lhe dizer, não faltou nada para fazer. A não ser dar a ele meu pulmão jovem. Chegará um dia, se o ciclo da vida se cumprir, em que meu pulmão velho estará cansado. Rezo para que haja alguém ao meu lado, velho ou novo, querendo me dar o seu, quando esse momento chegar.

Juliana Doretto

Mulher 7 X 7 - Época

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