Joana Abranches
A
Doutrina Espírita é clara no que diz respeito às almas gêmeas. Não existem
metades que precisam se completar para desfrutar a eterna felicidade. Cada um
de nós é uma individualidade que estabelece laços e afinidades com outras
individualidades, através dos tempos e das vivencias sucessivas. Se
substituirmos o termo “gêmeo” por “afim”, vamos perceber que são muitas as
almas afins que encontramos e reencontramos por esse mundão de meu Deus, e que
todas elas, cada uma seu modo, têm seu espaço e importância em nossa caminhada.
Podemos dizer então que são várias as nossas “almas gêmeas”. Amigos, filhos, irmãos,
pais, mães, maridos e esposas, entre outros, formam a imensa fileira das
relações de afinidade construídas vidas afora.
Porém, apesar da clareza dos
ensinamentos espíritas, ainda vemos muita gente boa, dentro do nosso movimento,
cair nessa armadilha emocional, que está mais pra conto do vigário que pra
conto de fadas, e pode gerar graves conseqüências, não só na vida pessoal, como
também no núcleo espírita em que trabalham.
Temos
presenciado histórias preocupantes. Aqui, são aqueles dois médiuns, ambos
casados com outros parceiros, que se descobrem “almas gêmeas”; E aí, tentam se
enganar que estão “renunciando”… Mantém-se em seus casamentos, mas tornam-se
“irmãos siameses” na Casa Espírita. Sentam-se lado a lado nas reuniões, são
vistos juntos em todos os lugares, dão sempre um jeitinho de fazer parte da
mesma equipe (isso quando não arranjam uma missão que “a espiritualidade
designou somente aos dois”) e se isolam pelos cantos em conversas particulares
sem fim. Só tem olhos um para o outro e, em tal enlevo, não se dão conta que à
sua volta todos sentem o que está acontecendo, sobretudo seus maridos e
esposas, humilhados publicamente no melhor estilo adultério por pensamento e
intenção, embora sob a máscara do amor fraternal. Sim, porque o fato de não partirem
para o ato sexual não os exime do abandono afetivo e da traição emocional em
relação aos cônjuges.
Acolá, é
aquela irmã solitária e carente, que se depara com o eloqüente e carismático
orador. Que palestra!… Que palestrante!… Que homem! Ele só tem um defeito: É
casado!… E logo com aquela senhorinha já envelhecida e meio sem graça… Que
desperdício!… E eis que de repente ele também a vê na platéia… Bonitona,
elegante, jovial e olhando-o com aquele olhar de admiração apaixonada que há
muito ele não percebe na companheira… Afinal, o casamento – como todos após lá
seus trinta anos – já entrou na rotina. Oh céus! Ali mesmo cupido dispara a
flexa e zás!… Começam as justificativas íntimas: “Como não tinham se descoberto
antes?!… Por certo eram almas gêmeas que há muito se procuravam… O casamento
foi um equívoco; o reencontro uma programação para que pudessem trabalhar
juntos para Jesus.” Resolvem então assumir o romance. A mulher dele, abandonada
após anos de companheirismo e convivência, entra em profunda depressão, os
filhos se revoltam, a família se desestrutura, os companheiros se retraem,
decepcionados e temerosos… “Ora, quem tem suas mulheres e maridos que se cuide,
pois se aconteceu com o fulano, que era um exemplo, ninguém está livre”…
Instala-se
então o tititi e a desconfiança. Daí para o escândalo é apenas um passo, e para
o afastamento constrangido dos próprios envolvidos, sua família e outros tantos
trabalhadores desencantados com a situação, é um pulo. Sofrimento, deserção e
descredibilidade. Tudo pelo direito ao “felizes para sempre”junto à sua “metade
da laranja”… Mas, onde é que está escrito, no Evangelho, que é possível
construir felicidade sobre os escombros da felicidade alheia ou edificar
relacionamentos duradouros em alicerces de leviandade e egoísmo?
Temos
visto estrondosos equívocos desse tipo mexer seriamente com estruturas de
famílias e Casas Espíritas, fazendo ruir Instituições e relações que pareciam
extremamente sólidas. Temos visto companheiros valorosos das nossas fileiras,
que caminhando distraídos de que “muito se pedirá àquele que muito tiver
recebido”, de repente resolvem jogar pro alto o patrimônio espiritual de uma
vida inteira, em nome do “amor”. E assim, cônjuges dedicados e dignos são
descartados como se não tivessem alma nem sentimentos, em detrimento de
aventuras justificadas por argumentos inconsistentes, sem nenhum respaldo
ético/moral ou espiritual. Isto quando ainda há um mínimo de honestidade e se
pede a separação, porque alguns preferem continuar comodamente em seus relacionamentos
“provacionais”, porém mantendo, na clandestinidade, um “afair” paralelo com a
tal “metade eterna”, sob a desculpa esfarrapada de que a família deve ser
poupada, pois “família é sagrado!!!” Logo se faz sentir o efeito dominó. Lá adiante, após vários
corações feridos e muitas quedas morais, a convivência faz a alma gêmea virar
“alma algemada”. As desilusões chegam, inevitáveis, com todo o peso resultante
das atitudes ditadas pelas paixões, mas na maioria das vezes, já é tarde pra
retomar, ainda nesta existência, o percurso abandonado.
Reflitamos.
Ninguém chega atrasado na vida de ninguém. Se chegou depois é porque não era
pra ser. E se não era pra ser há um bom motivo para isso, visto que as Leis
Divinas são indiscutivelmente sábias, justas e providenciais. Não tem pra onde
fugir: Quando o teste nos procura, ou somos aprovados ou forçosamente teremos
que repetir a lição futuramente, e em condições bem mais adversas…
Podemos
reencontrar, no grupo de trabalho espírita, grandes amores e paixões do passado
que nos reacendem sentimentos e sensações maravilhosas? Sim. Podemos olhar para
companheiros de ideal espírita com outros olhos que não sejam os do amor
fraternal? Sim. Nada mais natural. Mas sabemos, pelo Apóstolo Paulo, que poder
nem sempre significa dever… Portanto, o bom-senso nos diz que investir ou não
afetivamente nessas pessoas, vai depender de que ambos estejam livres para
fazê-lo.
Alguém
haverá de argumentar que casamento não é prisão e que aliança não é corrente;
que ninguém está preso a ninguém “até que a morte os separe” e que o próprio
Cristo admitiu a dissolução do casamento. Porém, o espírita não desconhece que,
na maioria dos casos, muito além dos compromissos cartoriais existem profundos
compromissos e dívidas emocionais entre aqueles que se escolheram como marido e
mulher nesta vida. Compromissos muito sérios para serem dissolvidos porque o
corpo requer sensações novas, porque a mulher envelheceu, perdeu o brilho ou
porque o marido ficou rabugento… Como se o outro estivesse só quebrando um
galho enquanto a “outra metade” não chegava…
Todos
almejamos felicidade, e no estágio evolutivo em que nos encontramos, isso ainda
tem muito a ver com realização afetiva. Por isso mesmo, não devemos ignorar que
só a quitação de antigos débitos emocionais é que nos facultarão essa
conquista. Precisamos interiorizar, de uma vez por todas, que os casamentos por
afinidade ainda são raros neste momento planetário, e que se ainda não
conseguimos amar o parceiro que nos coloca em cheque ou aquele que não
corresponde aos nossos anseios, o conhecimento das leis morais exige que ao
menos nos conduzamos com um mínimo de retidão e tolerância diante deles. Tal
consciência nos exige também, caso nos sintamos atraídos por companheiros já
comprometidos, que nos recusemos terminantemente, sob qualquer pretexto, a
desempenhar o deprimente e desrespeitoso papel da terceira pessoa numa relação,
pois não há conversa fiada de alma gêmea que dê jeito no rombo emocional aberto
pela desonestidade afetiva, nem justificativa de carência e solidão que nos
permita desviar da rota do dever sem que tenhamos, forçosamente, que colher
amargos frutos, porque “se o plantio é livre, a colheita é obrigatória”.
Não se
colhe rosas plantando espinhos. Sejamos responsáveis diante daqueles que
escolhemos e que nos escolheram para compartilhar a vida. Acautelemo-nos contra
as ilusões. Se os nossos anseios são irrealizáveis por agora, respeitemos as
limitações impostas pelo momento que passa; Por mais possa doer olhar de longe
um dos muitos seres amados, que cruza o nosso caminho nesta vida, mas que já
optou por outra pessoa, só a dignidade de nos manter à distância é que vai
possibilitar, pelas justas leis da vida, que conquistemos por mérito, lá na
frente, em outras circunstancias, a alegria do reencontro e a partilha do afeto
junto àquele que nos é tão caro, porque estaremos redimidos dos ônus afetivos
do ontem através das atitudes renovadas do hoje.
“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça,
e tudo o mais vos será acrescentado” (Mateus 6.33)
Saibamos buscar… Saibamos esperar… Trabalhemos por
merecer… Afinal, temos pela frente a eternidade!
* Joana Abranches – Assistente Social e
Presidente da Sociedade Espírita Amor Fraterno – Vitória/ES
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