sábado, 12 de janeiro de 2013

“Eu não quero que você tenha cabelos brancos”

“Vocês ficam testando minha paciência, me cansando aí ó nascem uns cabelos brancos aqui”, disse, apontando para minha cabeça, num tom que misturava zombaria e bronca.
A pequena continuou me olhando como quem tenta processar um conteúdo novo. A filha mais velha, com cara de horror, gritou:
“EU NÃO QUERO QUE VOCÊ TENHA CABELOS BRANCOS!”
Depois de engolir em seco, eu ri, e tentei desanuviar o clima.
“Filha, que isso? Todo mundo um dia terá cabelos brancos. Tem mulheres muito mais novas do que eu que tem cabelos brancos desde muito cedo porque é de família. Gente que pinta desde os 20 e poucos.”
Os olhos dela mostraram surpresa.
” É?”
“É! Por sorte, nossa família não tem muito. A minha mãe só foi pintar o cabelo depois dos 40. Sua tia Ana, que é mais velha do que eu, nunca pintou. Não tem nada demais. Não vou ficar velhinha de uma hora pra outra só porque apareceram uns cabelos brancos.”
Meio desconfiada, ela continuou calada, talvez repensando a reação anterior.
“E tem até quem goste, ué, branco, vermelho, azul…mas você acha que eu vou acordar amanhã com a cabeleira TODA branca?”
Ela riu. Saí da mesa curvada simulando voz rouca.
“Tá me achando velhinha tá? Preciso ir agora minhas criancinhas…aiiiii que dor nas costas… ”
Ela gargalhou. A caminho do trabalho, perguntas invadiam minha cabeça. Pinto? Tonalizo? Faço mechas? Espero mais um pouco? O castanho quase preto é marca da família. Não queria inventar um novo padrão, moderno e tal…até que as ideias cosméticas bateram num cruzamento da minha mente. O medo da minha velhice bateu nela. A criança diante da passagem do tempo gritou. Exigiu minha juventude eterna e eu, surpresa, ri.
Brincamos de pega-pega e subimos em árvores juntos. Andamos de bicicleta. Carregamos as duas, ao mesmo tempo, no colo, reclamando do peso, é certo, mas fortes o suficiente para continuarmos com essa aura de heróis concedida apenas a pais de pequenos, antes que eles adolesçam e nos chamem de chatos inconvenientes. Somos o retrato da juventude diante da filha, mas a juventude passa, passará, e mesmo que eu me sinta jovem, e que pinte os cabelos, e que não fale nunca mais em cabelos brancos à mesa do café da manhã, estarei envelhecendo.
E eu gosto disso. De estar à beira dos 40. De sentir a vida com sabor de fruta mordida, de reconhecer que somos um projeto inacabado, uma obra diária onde depositamos novos materiais, acabamentos finos de acordo com a idade, e que a pintura do rosto vai sendo trabalhada com o tempo e que há beleza nisso, como a alegria da música que ecoa de uma casa iluminada, é a juventude gritando animada em eterno aprimoramento.
Dos destroços do meu pensamento eu me resgatei decidida a não usar mais meus cabelos brancos contra mim.

Por Isabel Clemente é editora de ÉPOCA no Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Lembrei de uma vez que a Lu danou-se a chorar, porque eu e Kiko falamos que um dia, com a graça de Deus, seremos velhinhos. Quando perguntei a razão do choro, a resposta sincera e sentida: "Porque quando você for velhinha há muito tempo, vai morrer, e eu não quero que você morra."

    Foi nossa primeira conversa sobre vida e morte... Ela tinha 3 ou 4 anos. :-)

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